23 novembro, 2014

As mulheres da Ilha Anã - Capítulo 01 - A Festa Que Não Aconteceu

As luzes de festa já haviam sido colocadas. Pequenas pedrinhas luminosas amarradas em fios de tecido tão finos que quase pareciam transparentes.
O brilho interno dessas pedras iluminava aquele céu escuro como belas estrelas multicoloridas: rosas, azuis, verdes, brancas e amarelas. Algumas, já gastas de outras festas e de muita luta contra a escuridão, já começavam a piscar e se apagar, o que criava um belo desenho e uma certeza aterrorizante. Chegaria um dia quando todas pedras na ilha seriam apenas um pedaço negro de cristal sem utilidade. Assim como as mulheres que ali viviam, as pedras também estavam fadadas a morrer sem ver outra luz além daquela falsa claridade que elas mesmas emitiam. Era uma triste metáfora para um dia de festa, pensou Nyweah.
Apesar da escuridão completa, o sol ainda estava em algum lugar no céu. Sua luz não tocava o chão, mas o calor entregava seu esconderijo sobre as nuvens pretas que intensificavam aquela sensação de calor do fim do mundo.  O que não era necessariamente uma coisa ruim, pensavam alguns. O fim do mundo poderia ser um grande alívio de luz. Uma luz crescente que banhasse tudo e todos. Muito calor, mas muita luz, talvez assim fosse o fim do mundo ideal. Desde a lua da maldição, as mulheres da Ilha Anã tinham visto a vida passar assim: escuridão, calor, luas longas e um desejo constante de serem movidas dali, nem que fossem para fora da ilha e de seus corpos.
Nyweah, que comemorava hoje seu décimo terceiro ciclo lunar, observava de longe a montagem de sua festa. As mulheres felizes, rindo e esquecendo as dores da reclusão caminhavam faceiras com potes de comida e decorações improvisadas com o que havia na ilha. O vazio de morar no meio do vazio era preenchido pela comemoração. Ela não entendia o motivo de se comemorar outras 500 luas, que era a contagem padrão de um ciclo lunar dentro da ilha desde muito tempo. Nyweah acreditava que, na verdade, as mulheres deviam todas se reunir, cabisbaixas, se aproximar com um certo receio e dizer, de um modo quase que inaudível e muito respeitoso: "Nyweah, sentimos muito que você tenha passado mais 500 luas da sua vida trancada aqui nesse lugar limitante e limitado. Não queríamos que sua mãe estivesse tão doente. Não queríamos que seu pai fosse um dos motivos por você estar trancada e cercada pelo Mar da Escuridão.". Tentou afastar esses pensamentos de sua cabeça quando percebeu o quão egocêntrica parecia. Se concentrou em como era bom todas ainda acreditarem que apesar do calor, do medo e das dores, um ciclo lunar era motivo de festa e comemoração. Essa talvez fosse uma forma de manter a sanidade das habitantes da Ilha Anã. "Ah, que felicidade! Que ciclo lunar formidável! Olha, esse vai ficar para o mural de ciclos lunares inesquecíveis.". E, quem sabe, também fosse uma oportunidade para Nyweah se expiar um pouco da culpa, do seu fardo paternal. Era um dia em que ela podia proporcionar alento para as mulheres. Todas elas tinham um porquê para acordar, se arrumar e se mexer para lá e para cá, entrando nas casas das outras, se ajudando e convivendo: era dia de festa. E ela, mais do que ninguém, não tinha o direito de negar aquela alegria para a ilha.

De onde estava sentada, Nyweah conseguia ver sua casa, uma pequena construção de pedras cinzas que nunca haviam visto a luz do sol. Uma pequena porta de madeira azulada, encrustada de pequenas pedras do sol, mas que há muito perderam o brilho. A entrada para um ambiente escuro e frio onde ficavam as duas camas de madeira, a sua e a de sua mãe. Uma janela lascada pelas chuvas incessantes estava aberta desejando um pouco de luz para desenhar suas frestas sobre a mãe de Nyweah, que dormia um sono movimentado. Lorenah suava balançante na cama, esquentando os panos surrados que faziam as vezes de lençol. Seu corpo sofria de uma doença que ninguém na ilha compreendia e que a acompanhava desde o nascimento de Nyweah, antes mesmo de ter que fugir de sua casa e do exército da Capital. O que eram apenas algumas pontadas, calafrios e tremores tinham evoluído para poucos momentos de alívio durante as luas. Dores afiadas penetravam a carne de Lorenah, quem passava a maior parte do tempo deitada em sono profundo. Algumas mulheres ajudavam sua filha na vigília, passando na janela e ficando à espreita, observando, rezando e esperando outra zeladora tomar o seu lugar. Não que houvesse muito para se fazer, mas ficar ali absorvendo aquele sofrimento também fazia feridas nas almas menos sensíveis. Quem se postava à janela fazia isso, pois sabia o quão doloroso era para Nyweah, que nada podia fazer para que a mãe melhorasse além de esperar que alguma rebelião levantasse o povo contra a Capital, que assim o sol voltasse a brilhar e que assim algum barco pudesse vir ao seus socorros. Lorenah precisava ser levada depressa para algum sacerdote, xamã ou qualquer um que pudesse tentar ajudá-la de alguma forma. Tentar qualquer coisa. Mandalah, a anciã da ilha, nunca havia desistido de encontrar uma cura, uma forma de trazer Lorenah de volta para vida. Apesar de não entender nada sobre essa misteriosa doença, uma única certeza pairava sobre o ar, assim como as névoas negras, Lorenah não iria sobreviver muito mais se ninguém alcançasse uma forma rápida de combater a doença.
Mandalah tinha sido uma segunda mãe para Nyweah, dividindo os primeiros cuidados da bebê com Lorenah. Ajudou preparar a alimentação, na retirada do leite de Lorenah, nos primeiros passos de Nyweah e tudo que uma mãe deveria possibilitar. Com o avanço das dores qualquer movimento enviava uma onda de dor lancinante pelo corpo da jovem mãe e a anciã, percebendo então que Lorenah não poderia fazer o papel de mãe tão logo, repartia seu tempo entre cuidar de sua filha Mariah, olhar por Nyweah e investir seu tempo no entendimento da enfermidade e na busca de uma cura. Enquanto Nyweah dormia pequena, indefesa e esquecida dos sofrimentos da mãe, Mandalah se debruçava sobre velhos livros trazidos escondidos nos barcos que fugiram da Capital. Apesar das tantas páginas ficaram para trás, escondidas nas nuvens negras e densas do Mar da Escuridão, Mandalah acreditava que em alguma linha ali poderia estar a cura de todo aquele martírio. Ter largado livros que ela própria escreveu, ou mesmo os que foram comprados e recebidos durante os anos de sacerdotisa em uma terra onde as mulheres hoje eram proibidas de praticar a magia acabava sendo um retrato dessa fuga: a saída da luz para navegar escuridão à dentro. As poucas capas duras que conseguiram ser trazidas, mostravam-se inúteis. Nenhuma poção tinha efeito. Nenhuma unção diminuía as dores. Nenhum feitiço diminuía o mal estar de Lorenah e, consequentemente, das mulheres que viviam à sua volta. Mandalah, em suas longas noites de sonos reveladoras, tinha pressentido que os poderes que tinha disponível ali naquela ilha eram insuficientes contra a doença, mas ela continuava lutando, ignorando as visões e lutando contra o tempo. Lutando por Nyweah, a menina que tinha crescido, tomado consciência do calvário em que sua mãe vivia, impossibilitada de sair da cama e que esperava ansiosa a lua de sua morte.
Era Lyllah quem estava agora à janela de Lorenah. Com um grande cesto apoiado no parapeito, fazia a separação de grãos que se transformariam em alguma iguaria durante as festividades. Nyweah não podia precisar, mas sabia que os olhos élficos de Lyllah deviam estar correndo ciclicamente dos grãos para o cesto e do cesto para a cama, onde sua mãe dormia sedada por alguma bebida dada por Mandalah. Todas as mulheres à janela se comportavam da mesma forma. Preocupadas com Lorenah, ficavam repartindo a atenção de seus afazeres com o olhar para dentro da pequena casa. Qualquer movimento diferente devia ser reportado para a anciã ou a filha e isso as deixava ansiosas e superatentas. “Será eu a mulher que vou levar a boa notícia que, no dia do aniversário da filha, a mãe levantou como de uma longa noite de sono se sentindo incrivelmente bem?” e “Será eu a mulher que vou dizer que, justo hoje, no décimo terceiro ciclo lunar da filha, Lorenah morreu?” deviam ser duas perguntas passando pela cabeça Lyllah, pensou Nyweah enquanto descia a colina terrosa em direção ao maior casebre da Ilha. A maior Pedra do Sol sobre um telhado de palha. Aquele que ficava situado bem no meio daquele mínimo pedaço de terra cercado por água e escuridão por todos os lados, a casa de Mandalah.


Mandalah estava ao fogão, colocando duas madeiras escuras para queimar. Atarefada, corria seu corpo rechonchudo de um lado para o outro, desviando de um pequeno gato do mato que cismava em aparecer em sua cozinha, sempre miando e pedindo com seus olhos gulosos um pouco de bolo de arbíneas. Arbíneas eram frutinhas vermelhas, redondas, pequenas, levemente adocicadas e extremamente desconhecidas. Na verdade, o bolo feito com as frutas havia surgido de uma tentativa de poção que não deu certo, entretanto, como Mandalah gostava de pensar, tudo sempre dá certo, você que talvez não esteja pronto para perceber. E ela não estava, mas o gato sim. Dessa vez não havia bolo de arbíneas. Mandalah estava apressada tentando terminar um chá digestivo para Magnólia, uma anã jovem, que passava ainda suas primeiras comemorações de ciclos lunares.
A pequena, de altura e de idade, fora escolhida pelos pais para ajudar a anciã na produção dos doces para a festa. Era uma grande honra poder dividir a cozinha com Mandalah, para a criança, que tinha a oportunidade de aprender alguns truques culinários, e para a família, que retribuía com essa ajuda, um dos tantos favores que aquela cozinha e fogão já tinham resolvido.
Magnólia soluçava e passava as mãozinhas carnudas por cima de sua barriga. A camisa feita de pele já havia subido para dar espaço ao estômago reclamante. A cabeça da anã rodava na cadeira, murmurando dores quase ininteligíveis e promessas absurdas:
- Eu nunca mais vou encostar em comida nenhuma se eu sobreviver...
- Mas menina, pare de besteira! É óbvio que você vai sobreviver – disse Mandalah rindo e mexendo eu seus vasinhos de flores – Você não está morrendo! Só de vergonha e isso não leva ninguém embora não, pode ficar tranquila. Este é um segredinho nosso, só preciso achar uma florzinha aqui e você vai ficar boa mais rápido do que um dragão aprender a voar.
- Não conta para minha mãe, por favor! Ela disse que era para eu me comportar... – estourou Magnólia em lágrimas e gemidos
- Magnólia, por favor você! Pare de chorar, senão eu não consigo me concentrar aqui. Não vou falar nada para ninguém e não é nada demais. Você ficou provando todas as comidas da festa e teve uma indigestão, é só isso. Já vamos resolver seu problema.
Mariah, a filha de Mandalah, observava quieta pela janela. Quase ajoelhada do lado de fora da casa, só era possível ver seu rosto, dos olhos para cima, observando a confusão dentro da cozinha. Mariah tinha medo do contato com estranhos e quase não falava na presença de outras pessoas sem ser sua mãe. O trauma parecia ter se desenvolvido quando criança, já que ela havia ficado boa parte da infância trancada dentro da casa, sem poder interagir com outras meninas e com as outras mulheres. Sua mãe dizia que apesar dos esforços não conseguia determinar a doença e que durante um de seus sonhos precognitivos soube que não poderia deixar que ela tivesse qualquer contato com outras pessoas até o início do nono ciclo lunar. Durante este período Mandalah e a filha viveram às escuras, com cortinas espessas tapando todas as janelas e com a porta sempre trancada. A chave, pendurada em uma corrente, era companheira inseparável da anciã que passava nas casas para ver se alguém precisava de ajuda, botar a conversa em dia e visitar Nyweah, sua mãe e uma das ajudantes que ficava lá, enquanto Mandalah cuidava da filha.
- Posso ajudar, anciã? – perguntou uma voz feminina vindo da porta
Entre os chiados da panela ao fogo e o crepitar da lenha, Mandalah não percebeu que a voz era de Nyweah, com seus olhos pretos certeiros. Esse era com certeza um dos orgulhos de Mandalah, como a menina havia aprendido rápido a diferenciar flores e plantas na floresta e nas ilustrações dos poucos livros de herbologia trazidos pela anciã. Para passar o tempo com Nyweah e tirar sua cabeça das dores de sua mãe, Mandalah levava a garota com ainda poucos ciclos lunares para o bosque da Ilha Anã, onde se sentava, colocando a pequena em seu colo e perguntava qual planta era qual e porquê. A ilha não era o lugar mais variado do reinado, mas já era um início para ensinar sobre formatos de caules, flores e frutos, a importância de se perceber o tom das pétalas de uma flor para diferenciar uma beleza venenosa de uma doçura com poderes mágicos. Com o desenvolvimento rápido de Nyweah, Mandalah evoluiu a brincadeira e pedia que ela desenhasse com um graveto no chão de areia a planta que ela pedia. Assim, as duas passavam o tempo juntas, o que só era interrompido quando Mariah também precisava dos cuidados de sua verdadeira mãe, enchendo Nyweah de ciúmes.
- Claro, por favor! Veja se em algum desses vasos tem uma espirradeira, preciso só de uma pétala.
Nyweah se debruça sobre os vasos, levanta e olha ao redor procurando algo.
- Mariah, pega essa faca perto de você para mim.
Mariah se assusta, com os olhos arregalados passa a mão pelo parapeito da janela, puxando uma faca escondida entre as madeiras e corre para a porta da casa. Nyweah pega faca e agradece a menina um pouco mais velha que ela.
- Ótimo! Me ajuda com o vaso? Segura ele do lado que eu vou tentar tirar a terra dele, a espirradeira derruba bastante pétalas e essa terra está nova. Provavelmente alguma pétala está escondida aqui embaixo.
- Sim... – responde Mariah bem baixinho
- Por que a Nyweah pode mexer nos seus vasos e eu nunca posso? E por que a menina fala com a Nyweah e não fala comigo? – pergunta Magnólia com uma mão nas costas e outra passeando pela barriga, como uma menina anã grávida – Você não gosta de mim, Mariah?
Nyweah e Mandalah só tem tempo de ver o vaso rodando ao chão. Mariah, mais rápida que a chegada de uma tempestade, havia corrido em direção ao bosque e claramente não era para encontrar mais espirradeiras.
- Eu devia não fazer mais nenhuma gota de chá para você! – esbravejou Mandalah pegando uma pétala de espirradeira que Nyweah lhe entregava

Magnólia sentou muda na cadeira e ali ficou, esperando o chá e o que diria sua mãe se descobrisse tudo que ela havia aprontado inconscientemente.