30 novembro, 2014

Alma Flamejante - Capítulo 3

Capítulo Três
A Pequena Donzela
Zyi acordou muito cedo naquela manhã. Olhou para as paredes de madeira de seu quarto e para o espaço no chão onde costumava existir um tapete, um vão que agora causava uma diferença de coloração e nível no piso, também de madeira, daquele cômodo da casa. Ele estava deitado em sua cama pensando em assuntos sem importância quando um acontecimento que surgiu em seus pensamentos o atraiu e fez com que ficasse imerso em uma lembrança.
Ele pensou sobre um dia em que estava caminhando pela Rua do Dragão, aquela rua cheia de lama, cheia de poças d’água, resultados da chuva intensa que estava caindo. Naquele dia, o céu assumiu um tom cinza-escuro, as nuvens aparentavam estar muito pesadas, assumindo um tom de tempestade. As casas estavam completamente fechadas porque o vento estava soprando muito rápida e agressivamente, fazendo, inclusive, muito barulho com seus movimentos bruscos. O medo de um possível furacão assustava a todos: não era algo que pudesse ser chamado de freqüente, mas, caso ocorresse, as chances de sobrevivência em um lugar como aquele eram demasiadamente pequenas.
Estava à tarde, no entanto, o dia não estava muito luminoso. Até mesmo alguns trovões podiam ser ouvidos pelas redondezas. Eram traços de um dia sombrio com um clima ingrato que assustava muito os moradores dali. O tempo anterior à chuva estava tão aberto que o início desta se tornou algo muito surpreendente. O espaço de tempo no qual o céu se cobriu de nuvens enegrecidas e a água iniciou sua queda havia sido consideravelmente pequeno.
Zyi estava correndo para chegar a sua casa tentando escapar de ficar exageradamente molhado. No caminho que percorria, teve a impressão de ter visto alguém se movendo.
“Tem alguém ali, eu preciso ter certeza”, pensou o jovem, preocupado que alguém pudesse ficar desabrigado naquela enorme tempestade.
Ele correu na direção da pessoa que julgava ter avistado, passou da porta da sua casa e quase chegou à Rua das Cores, a rua seguinte à sua. Enquanto corria, o som de seus pés pisando em inúmeras poças era extremamente audível. A água estava sendo espirrada para todos os lados e a perna dele estava marrom de tanto barro. Mesmo nessas condições, não desistiu de chegar até aquela pessoa desconhecida.
Depois de passar a Rua do Dragão e mais outras duas casas da Rua das Cores, Zyi chegou a um beco sem saída. Este estava terrivelmente sujo, composto por paredes que eram, como quase tudo no Vilarejo da Pena, feitas de madeira e havia duas grandes latas de lixo.
Assim que entrou naquele beco, Zyi percebeu que sua intuição estava certa. Ele viu nitidamente que uma pessoa estava ali. Entrou ali para que pudesse se aproximar dela.
Havia uma garota ao lado de uma das latas de lixo. Ela era baixa e loura, tinha olhos azuis e encontrava-se abaixada chorando bastante. A menina visivelmente tremia de frio e demorou alguns instantes até que levantasse a cabeça e visse o Zyi. Ao vê-lo, passou a mão no rosto para tentar esconder suas lágrimas, mas, como estava suja de lama, apenas tornou a situação mais embaraçosa, já que agora havia uma grande mancha marrom em sua bochecha.
A pequena garota perguntou:
– Quem é você? – sua expressão era de medo, quem seria aquele rapaz que apareceu de repente ali? Era um questionamento compreensível de ser feito por uma pessoa perdida e encontrada por um estranho.
– Eu sou Zyi, tenho oito anos de idade, por que você não está em casa? – ele demonstrava meiguice em sua voz – Você vai adoecer! – disse Zyi, que demonstrou preocupação ao olhar aquela menina no chão a chorar copiosamente.
– Eu estou perdida, eu não sei onde eu estou... – ela começou a soluçar, e então mais lágrimas apareceram em seu rosto. Tinha dificuldade de fixar seu olhar naquele rapaz preocupado com o seu bem-estar e demonstrava estar confusa com toda aquela situação na qual estava.
– Venha comigo – convidou– Eu moro na outra rua! – sorriu de forma a consolar a menina – Quando a chuva parar, eu te ajudarei a encontrar seus pais – disse Zyi, mantendo seu sorriso inocente.
– Mesmo? – respondeu com cautela – Eu não vou te incomodar? – o medo que a menina apresentara anteriormente se dissipara dando lugar a uma sensação de grande alívio.
– De jeito nenhum! Venha comigo! – tornou a convidá-la – Você com certeza vai acabar adoecendo nessa chuva tão pesada! – Zyi olhou firmemente pra ela, de forma bastante consoladora e encorajadora.
– Muito obrigada! – ela começou a sorrir ao perceber que tinha dado a sorte de encontrar uma pessoa disposta a ajudá-la naquele momento embaraçoso em que ela se encontrava.
Zyi a conduziu até sua casa na Rua do Dragão correndo e eles não demoraram muito. Passaram pela porta em velocidade e pararam ofegantes no primeiro cômodo daquela grande casa feita de madeira.
Naqueles tempos, a sala ainda tinha um sofá vermelho, bem estofado com espaço para três pessoas e com almofadas douradas, uma mesa de madeira, tendo esta quatro cadeiras, e um pequeno bar. A ornamentação era relativamente simples; o bar era pequeno e tinha alguns vinhos bem antigos, os quais ninguém bebia, mas que segundo o pai de Zyi, eram uma antiga herança da família e, por isso, não deviam ser tocados ou vendidos.
Eles apenas atravessaram a sala e subiram as escadas. Ao chegarem lá, uma voz feminina que vinha de uma porta no térreo, a qual Zyi sabia se tratar da que dava para a cozinha da sua casa. Também reconhecia a dona daquelas palavras.
– Quem está aí com você, Zyi?
– É minha amiga, mamãe! – respondeu rapidamente e torceu para que não houvesse mais questionamentos. Ele estava com sorte.
– Tudo bem! – disse Akira, a mãe do Zyi – Se vocês quiserem comer alguma coisa é só me falar, tudo bem? – o tom amigável em suas palavras era reconfortante.
– Tudo bem, mamãe! – disse Zyi animadamente, sem deixar a mãe perceber que a pessoa que estava com ele era uma total desconhecida de quem não sabia dizer nem o nome.
Zyi levou a menina até seu quarto, e quando entraram nele, Zyi disse:
– Bem, não tem muita coisa aqui, mas pelo menos você não vai ficar encharcada. – Zyi abriu seu guarda-roupa e pegou algumas peças – Você pode vestir isso aqui, pode usar o banheiro pra tomar um banho e trocar de roupa – ele indicava todas as direções com seus dedos – Aproveite que tem água quente, afinal, você não vai querer ficar com frio e com essas roupas molhadas, vai? – balançou a cabeça concordando com o que Zyi acabara de dizer.
Ela pegou as roupas da mão de Zyi timidamente, entrou no banheiro e fechou a porta. Ela estava usando, antes de entrar no banheiro, uma calça azulada e uma camiseta vermelha, ambas completamente encharcadas e muito sujas de barro.
Zyi sentou-se e esperou até que ela tomasse banho e trocasse de roupas. Enquanto isso, olhou para fora de seu quarto pela janela e viu que as gotas de chuva continuavam a cair céu abaixo. Sem qualquer perspectiva de ver a chuva parar, continuou aguardando pacientemente.
De repente, o som do chuveiro parou e a porta se abriu. As roupas do Zyi eram um pouco grandes para aquela menina, mas ela estampava muita felicidade em seu rosto. Ela não se importava nem um pouco com o fato de aquelas roupas não terem o tamanho adequado, afinal, estava seca e confortável.
Zyi pediu para que ela esperasse, porque também ia tomar banho, já que também estava bastante sujo. Separou rapidamente algumas roupas em seu armário e foi diretamente para o seu banheiro.
Após alguns minutos, Zyi saiu de lá com seus cabelos ruivos molhados e seus olhos escuros olhando com felicidade para Karin. Ele estava vestindo uma bermuda marrom e uma camisa branca com detalhes na mesma cor da bermuda.
Sentou-se ao lado dela, em sua cama, e perguntou algo que queria saber, mas que ainda não havia citado.
– Qual é o seu nome?
– Ah! Desculpe, eu me esqueci de me apresentar! – disse de forma bastante desajeitada – Meu nome é Suzuka, Karin Suzuka, eu tenho sete anos – respondeu, ainda de forma bastante envergonhada, acanhada.
– Que nome bonito! – Zyi sorriu meigamente, deixando a menina sem graça – Posso te chamar apenas de Karin?
Na cultura humana, na grande maioria dos vilarejos, era um hábito se referir às outras pessoas pelo primeiro sobrenome, o materno. Referências usando o primeiro nome eram tidas como sinal de grande intimidade entre as pessoas em questão.
– Obrigado e claro! – Karin sorriu ainda um pouco tímida e sem graça com o pedido que o jovem havia feito.
– Muito bem, Karin – iniciou aquele menino – O que você estava fazendo antes de se perder? – perguntou com um ar de curiosidade, mas, acima disto, preocupação com o porquê de ela ter se perdido naquele lugar.
– Eu estava andando com meus pais... – ela botou o dedo no queixo e olhou para cima tentando se lembrar – Eu vi um lindo cachorro branco, eu o estava perseguindo... – Ela parecia estar um pouco triste com o fato – Quando eu olhei em volta, eu já não sabia mais onde eu estava...
Karin começou a derramar lágrimas, sua feição era de muito descontentamento consigo mesma. Antes que ela se desestabilizasse ainda mais, Zyi segurou a mão dela com firmeza e, então, disse:
– Não se preocupe, você está segura agora. – sorriu como uma forma de tentar consolá-la.
Ela olhou para o rosto de Zyi e viu que os olhos escuros dele estavam mostrando-se plenos de sinceridade e carinho. Não conseguia acreditar que ainda existiam pessoas como ele naquele mundo violento em que viviam!
Em tempos de guerra constante onde as crianças perdiam a inocência tão cedo, os meninos só conseguiam demonstrar ódio, e, quando muito, indiferença... Ela estava impressionada com a atitude dele: era tão amável, fofo e doce! Além disso, era muito simpático.
Ele permaneceu conversando com ela durante alguns minutos, minutos que viraram horas, e a fez esquecer a tristeza por completo. Entretidos em vários assuntos diferentes, nem sentiam o tempo passar.
Karin estava acreditando cada vez mais que Zyi era mesmo uma boa pessoa. Era como se pudesse ver nos olhos dele que era alguém que queria apenas o melhor para ela. Desde o sorriso sereno até o olhar carinhoso, tudo levava a crer que era completamente diferente do habitual, diferente de todas as pessoas que conhecera antes.
Sim, Zyi salvara Karin. Ela era uma garota indefesa em um lugar onde não conhecia ninguém e, para piorar a situação, a Rua do Dragão era uma rua de nobres, sendo ela uma plebéia. Por mais que fosse bonita e simpática, suas roupas já deixavam claro que não fazia parte da nobreza.
Ela ainda podia dar o azar de encontrar homens mais velhos cruéis que cometessem delitos graves, como espancá-la, mas encontrou um garoto quase da sua idade que, além de ajudá-la a sair dali, deu abrigo durante a chuva, roupas secas e um banho para que ela não sentisse frio e pediu absolutamente nada em troca. Um favor completamente sem malícia, na inocência de uma criança com intenções verdadeiramente nobres, coisa tão rara durante um período de guerra como aquele pelo qual Huppethay passava...
Zyi estava sorrindo muito. Ele viu que, depois de tudo, Karin era uma pessoa muito simpática. Ela falava bastante e tinha um humor excelente, além disso, era muito amável. Ele estava pensando se ela pensava o mesmo sobre ele, mas não ia perguntar. Estava satisfeito pelo simples fato de que a expressão no rosto de Karin tinha melhorado significativamente e que ela sorria freqüentemente com seus comentários. Assim, eles foram se conhecendo melhor e se afeiçoando amigavelmente um pelo outro, formando laços de amizade.
– Zyi, você é tão doce! – sussurrou Karin com um sorriso largo em seu rosto.
– Obrigado – o rosto do Zyi ficou completamente vermelho com aquele elogio totalmente inesperado.
– Você nunca tinha me visto antes, e me trouxe até a sua casa, para o seu quarto! –ela olhava para ele diretamente nos olhos, algo que foi se tornando mais natural ao longo daquele dia – Você me emprestou roupas e conversou comigo esse tempo todo, apenas para me deixar mais feliz! – suspirou e fez uma pequena pausa – Eu nem sei como te agradecer por tudo isso! – dizia com uma feição de contentamento e muita satisfação em seu rosto.
– Você não precisa, Karin! – disse Zyi imediatamente em resposta às palavras dela – Eu apenas acho que eu ia gostar de ser ajudado nessa situação, então eu tento ajudar também. – sorriu – Tratar como quer ser tratado, não é?
– Você é tão doce! – disse – Eu gostei de você, nós somos amigos agora, não somos, Zyi? – ela estava bem mais à vontade.
– Bem, eu acho que sim, Karin! – Zyi sorriu um pouco envergonhado, mas feliz por ter alcançado seu objetivo inicial.
– Ótimo! – disse fazendo sinal de positivo com a sua mão direita.
A chuva parou e Zyi levou Karin para a praça central, que era muito mais bonita naquele tempo. As rachaduras no chão ainda não existiam naquela época e toda a estrutura também estava consideravelmente mais conservada.
Havia uma estátua no centro da praça, o homem representado era um rapaz que lutou contra os Orcs e os expulsou do Vilarejo da Pena, aquele jovem, sozinho, expulsou centenas de Orcs. Ele era conhecido como Peixoto, Maxwell Roosevelt. A estátua era tão antiga que não dava para ver com quem ou o quê o homem se parecia. Era visível apenas, pelo fato da estátua ser em tamanho real, que o homem era alto e forte, mas não tinha músculos muito grandes e imponentes, era um estilo de força que combinava com leveza e dava a sensação daquele homem ser, em campo de batalha, um homem mortal mais pela agilidade do que pela força bruta em si.
Havia muita gente andando para cima e para baixo, era fácil de entender porque Karin tinha se perdido. Atravessaram a praça e a menina conduziu Zyi até a casa dela a partir dali. Eles caminharam por muitos becos, viram muitos lugares sujos e, após andarem por alguns minutos, chegaram à residência que ela afirmou ser a sua casa.
Era uma pequena casa de madeira simplíssima. Esta tinha duas janelas visíveis além da porta, uma pequena horta à frente da casa onde se plantavam vegetais em geral, provavelmente, apenas para serem consumidos, já que o tamanho não se mostrava adequado para a venda de produtos. Uma pequena estradinha de pedra separava a horta em duas metades e conduzia até a casa de Karin, que apesar da simplicidade, era realmente muito bonita.
Quatro pessoas viviam ali. Karin, seu irmão mais novo, Subaru, e seus pais, Ygor e Clarisse. Karin virou-se para Zyi, sem graça.
– Posso te perguntar uma coisa antes de você ir embora? – perguntou Karin com um tom de voz cauteloso e ligeiramente melancólico e olhando diretamente para o Zyi.
– Claro. – respondeu, confuso com o questionamento.
– Nós iremos nos ver outra vez? – perguntou olhando no fundo dos olhos daquele jovem que a ajudara tanto.
– Eu não posso vir aqui, meus pais não vão me deixar sair de casa para vir até aqui... – suspirou Zyi – Eu acho que eles não pensam da mesma forma que eu... – disse sem muita animação – Mas você pode me visitar a qualquer momento, quando quiser. – a voz dele reacendeu – Eu só tenho aulas de manhã, estou livre durante o resto dos dias. – explicou sorrindo.
– Eu te visitarei todos os dias a partir de agora, prepare-se! – disse sorrindo bastante. Então ela fez o gesto formal de despedida feminino dos humanos, curvar-se ligeiramente flexionando de leve os joelhos e levando as mãos à cintura como se estivesse levantando um vestido ligeiramente.
– Eu vou! – disse Zyi, sorrindo e procedendo com o gesto formal masculino de despedida dos humanos: curvar-se ligeiramente e tirar, ou representar estar tirando, o chapéu e retorná-lo logo em seguida.
Zyi voltou para casa, e então, continuou falando com Karin quase todos os dias. Seus pais nunca descobriram que ela era uma plebéia, nem os pais da Karin que Zyi era um nobre. A amizade deles perdurou durante todo esse período de forma firme e consistente, eles jamais deixaram de dar apoio um ao outro em momento algum.
Infelizmente, durante esse período, Subaru descobriu que Zyi era um membro da nobreza e passou a desconfiar dele, mas sem nunca contar a seus pais sobre a natureza daquele rapaz. Subaru não confiava na elite do Vilarejo da Pena, julgava que esta era injusta e que queria o mal da plebe, dominando-a com uma religião ridícula e ditatorial. Para ele, Zyi usava Karin de alguma forma que não conseguia imaginar. Ele estava com ela por alguma razão, qualquer uma, menos gostar dela. Como conseqüência, Subaru sempre tratou Zyi muito mal e, por ser uma pessoa muito sincera, sempre deixou explícitos os seus motivos.
Zyi parou de pensar no passado. Ele olhou pela janela para Rua do Dragão. Esta não mais era uma rua nobre, mas o contrário: Zyi era o único que ainda vivia lá. O tempo tinha passado de forma que aquela rua caísse na superstição.
As pessoas tinham muito medo da rua desde que o último ataque de gorgonites, que causou danos sérios e jamais reparados na barreira que envolvia o Vilarejo da Pena. Era uma avenida aberta a novos ataques e, além disso, os ataques eram tidos, pelo fato de terem sido iniciados justamente naquela rua, que era a fronteira entre o vilarejo e a floresta, como sinais de que Deus amaldiçoara aquela rua por algum delito que os moradores pudessem ter cometido, por isso todos morreram naquele ataque, permanecendo apenas o Zyi, um garoto muito bom e respeitado por todos, vivo.
Zyi não se lembrava muito bem daquele ataque. Além do fato de que era muito novo, a investida havia sido muito traumática para ele e trouxe muita tristeza para o Vilarejo da Pena como um todo. Zyi não sabia nem ao menos dizer por que, mas lembrar de qualquer detalhe daquele dia o fazia chorar muito e, por isso, procurava apenas esquecer aquele evento.

Agora, só queria pensar no futuro que o aguardava. Este era a jornada que ia encarar ao lado de Ghan e o grupo que estava por se formar.