Capítulo Um
O Vilarejo da Pena
O dia com clima bom de quando Zyi foi para o cemitério
havia simplesmente sumido e se transformara em um bastante chuvoso, com as
nuvens negras todas juntas no céu. Havia tantas juntas que era simplesmente
impossível enxergar o azul celeste. Tornara-se um dia em que o frio predominava
de forma intensa, gerando calafrios arrepiantes e bater de dentes. As gotas de
chuva estavam caindo de forma cada vez mais forte.
– Vai haver uma tempestade aqui – disse uma pequena
garota que estava correndo para algum lugar. Mais uma vez, havia chuva por toda
a cidade: nos últimos cinco dias, apenas chuva e mais chuva. Era tanta água que
o precário sistema de esgoto instalado no Vilarejo da Pena tinha dificuldades
para escoar toda aquela água para fora da cidade. O sol que havia feito mais cedo
chegou a dar a sensação de que o cenário mudaria, mas não foi o que ocorreu e a
população continuava sem saber quando o tempo finalmente mudaria de figura.
O Vilarejo da Pena baseava-se na agricultura, logo, a
chuva ajudava muitas vezes, mas ao mesmo tempo, podia atrapalhar. Os
fazendeiros não podiam fazer muitas coisas porque a chuva não os permitia. As
colheitas praticamente cessavam, os animais dificilmente eram liberados para
pastar devido à grande possibilidade destes contraírem doenças, além de que o
risco de chuvas fortes quebrarem equipamentos também existia.
– Zyi, você está aí? – Alguém perguntou do andar de
baixo, gritando.
– Eu estou aqui, entra Karin, você vai pegar um
resfriado nessa chuva! – respondeu Zyi gritando do seu quarto, que ficava no
andar de cima. O mesmo era muito organizado. Havia uma cama feita de madeira
cuja ornamentação era demasiadamente simples e um armário, construído com o
mesmo material, alto e posicionado no canto direito do quarto, ambos impecáveis.
Havia duas portas, as quais, uma levava ao corredor e a outra ao banheiro, que,
como tudo naquele quarto, mantinha-se sempre perfeitamente arrumado.
Costumava haver um tapete no chão do quarto, mas Zyi o
vendeu para comprar comida para algumas crianças que passavam fome e estavam
vivendo na praça central da cidade. A ausência do tapete era notada devido a um
leve desnível no piso projetado especificamente para aquela peça, mas aquele
jovem nunca se importou com isso e preferiu ajudar os mais necessitados a
manter seu quarto belo e refinado.
– Zyi! Como você está? Eu estava preocupada, ninguém
te viu hoje, eu procurei você por todo vilarejo! – perguntou Karin, que tinha
altura mediana, era magra, tinha cabelos loiros, longos e lisos e olhos azuis e
uma delicadeza impressionante em cada gesto que fazia.
– Cinco anos atrás, ‘aquilo’ aconteceu cinco anos
atrás... – disse Zyi com uma expressão triste no rosto e um tom de voz
levemente misterioso. Ele estava com o olhar perdido no horizonte que via
através de sua janela.
– O que aconteceu, Zyi? – perguntou Karin, com a
preocupação evidenciada em seu tom de voz. Zyi costumava ser um menino muito
sorridente, por isso a expressão pensativa dele deixava a menina sem saber o
que fazer.
– A morte dos meus pais... – ele suspirou longamente
e, então, olhou para Karin – Eu gostaria muito de um dia trazer a paz de volta
a este mundo tão violento... – Zyi estava com uma expressão muito séria no
rosto, mas ele a desfez ao olhar para a amiga e lançou um sorriso sutil – Posso
te contar um segredo?
– Claro! – disse Karin, feliz por ver que o amigo
finalmente sorrira um pouco.
– Eu encontrei uma espada no túmulo do meu pai. – Zyi
mostrou a espada a ela. As cores vermelho, laranja e amarelo predominavam, a
lâmina era brilhante e afiada e havia dois ideogramas gravados próximos à
guarda. Com certeza era uma visão muito imponente e diferente de qualquer arma
que ela já tivesse visto antes. Não só o fato de ter aqueles símbolos marcados,
mas, principalmente, pela coloração, ela sabia que não devia se tratar de um
artefato qualquer.
– É tão bonita! – a voz dela demonstrava muita
empolgação – Eu amei! – Karin olhou para Zyi – Ela estava dentro do túmulo do
seu pai? – perguntou Karin com um tom de brincadeira.
– Não! – disse Zyi, constrangido, então olhou para ela
– Estava do lado de fora, em cima do túmulo. – assim que concluiu, os dois
riram imediatamente.
– Eu entendo... Então ela é sua agora! – sorriu Karin.
– Eu não sei, eu vou procurar o dono, se eu não o
achar, eu guardarei a espada para mim. – disse Zyi, e, logo que ele proferiu
aquelas palavras, a chuva parou. Foi tão instantâneo que a Karin riu antes de
falar sua frase seguinte.
– Meu Deus, Zyi! – disse ela se recompondo – Como você
consegue ser uma pessoa tão boa? – ela sorriu – Eu gosto disso em você, mas eu
nunca andaria por todo esse vilarejo atrás do dono de uma espada que apareceu
misteriosamente em cima do túmulo do meu pai... – disse Karin brincando com a
generosidade do amigo, ela sorriu para ele e, então, disse:
– Vamos fazer isso agora! – ela segurou a risada –
Vale a pena fazer isso com você! – ela não se conteve e riu, parou e continuou
– Vai ser divertido rodar o vilarejo buscando o dono de uma espada misteriosa.
– Obrigado! – disse Zyi com um grande sorriso em sua
face, agradecido por não ter que encarar tal tarefa sozinho. Eles saíram.
A casa do Zyi era bem simples vista por fora, era toda
feita de madeira sem adornamentos chamativos. Havia três janelas, uma do quarto
do menino, uma do velho quarto de seus pais e uma da sala. A casa tinha dois
andares. No segundo ficavam os quartos, no primeiro, a cozinha e a sala de
estar. Por sinal, esta estava completamente vazia, sem cadeiras, mesas, ou
qualquer coisa do gênero. Sem dar explicações, Zyi doou tudo que pertencia a
seus pais exceto uma kataná que ganhara de sua mãe.
A Rua do Dragão, onde a casa do Zyi se localizava,
estava muito suja por causa da chuva que havia acabado de cessar. Ele e Karin
andaram pela rua. Eles tinham que tomar cuidado para não pisar nas poças de
lama formadas pelas precipitações tão constantes nos dias anteriores.
Essa rua era cheia de casas e lojas, todas com a
aparência muito semelhante à da do Zyi. As lojas eram simples, tinham seus
nomes expostos, seus anúncios, mas era necessário que se entrasse na loja caso
quisesse saber detalhes sobre o que se tratava, afinal, não havia vitrines.
Quase todas as ruas do Vilarejo da Pena eram como
aquela, a única diferente era a Rua dos Nobres. As casas lá eram maiores e
existiam em menor número do que em outras ruas. Não havia loja alguma naquela rua.
Mesmo assim, a diferença não era grande e o padrão arquitetônico era mantido na
grande maioria das residências.
Aos poucos, Zyi e Karin foram andando por cada rua do
vilarejo individualmente. Rua por rua, casa por casa, perguntavam se a espada
havia sido perdida, doada, jogada fora ou alguma outra possibilidade que não
houvessem recordado, mas receberam incontáveis respostas negativas.
Os dois haviam andado por todas as ruas daquele
pequeno vilarejo, sem que alguém mostrasse ser o dono daquela espada, então
eles decidiram ir para a praça central, onde escolheram um banco para sentar.
Àquela altura, os assentos não mais estavam molhados.
A praça do vilarejo era razoavelmente grande, mas não
muito bonita, havia quatro bancos nas quatro posições principais da
Rosa-dos-Ventos. Havia um grande espaço no meio, onde crianças brincavam
despreocupadas. Tinha árvores atrás dos bancos e lá havia um ninho de pássaros
no topo de uma delas, as aves cantavam o tempo todo e os habitantes locais
amavam. A moradia dos passarinhos era tão antiga que as pessoas nomearam o
vilarejo para prestar uma homenagem àqueles seres.
– A canção desses pássaros é tão pacífica... – disse Karin,
sorrindo para Zyi e suspirando intensamente enquanto olhava na direção do
ninho.
– É... É tão bonita... Eu amo... – disse o jovem, que
se sentia muito mais calmo quando sentava e apreciava aqueles cantos.
– O que você vai fazer com a espada? Quer dizer, não
encontramos alguém que possa ser o verdadeiro dono. – Zyi estava inseguro
quanto à idéia de guardar a arma para si, mas ele não queria jogar um artefato
como aquele fora.
– Eu acho que é minha agora... – disse Zyi, e então
ele sorriu levemente desajeitado.
– Verdade.
– Karin... Você acha que essa é uma atitude legal? E
se o dono aparecer ou algo assim? – Zyi estava terminando a sua fala quando Karin
o interrompeu:
– É claro que é uma atitude legal! – ela olhou indignada
para seu amigo – Se o dono aparecer, tudo que você tem que fazer é devolver a
espada, nada mais que isso! – ela olhou para cima e respirou fundo – Zyi, ouça
bem, nós vasculhamos esse Vilarejo casa por casa atrás do dono por direito
dessa espada e não encontramos uma pessoa sequer que se responsabilizasse por
ela, o que mais você quer? – a voz dela dava a impressão de que o menino estava
tomando uma bronca, mas ele estava segurando o riso – Da próxima vez, você quer
dar um pulinho em Humânia para encontrarmos o dono da espada, ou você acha que
Zentera é mais adequada? – ironizou a menina – Essa espada é sua, nem que seja
momentaneamente e você está proibido de reclamar! – Zyi começou a gargalhar
após o sermão que recebera da amiga e esta acabou acompanhando a risada do
amigo.
Eles ficaram conversando sobre assuntos sem importância
por muito tempo e não perceberam o passar das horas. Eles demoraram tanto que o
céu começou a escurecer e uma pessoa acabou indo atrás deles:
– O que diabos você está fazendo com a minha irmã? –
gritou um garoto. Era um menino baixo e magro com cabelos pretos e curtos,
olhos azuis e rosto fino.
– Subaru, me dê uma folga, por favor! – a tom de voz
da Karin mostrava incômodo com a presença do menino que acabara de chegar –
Você é muito mandão! – ela reclamou – Você nem ao menos é mais velho que eu! –
ponderou ela – Zyi é meu melhor amigo! Eu posso ficar com ele se eu quiser! Vá
embora, tudo bem? – finalizou numa tentativa de fazer com que seu irmão caçula a
obedecesse e parasse de constrangê-la.
– Eu não vou! – berrou Subaru de forma grosseira – Ele
está te levando para o caminho errado! – acusou no mesmo tom de voz – Ele não é
uma boa influência! – conclui encarando Zyi.
– Quem é você para dizer se ele é boa influência ou
não? – Karin ficou irritadíssima com a última afirmação feita pelo irmão – O
vilarejo inteiro gosta dele, por que você ainda fala desse jeito? – ela estava
incomodada com a postura do irmão.
– Porque eu sei que ele não é tão maravilhoso... –
disse Subaru, olhando de lado, desdenhando do que a irmã acabara de falar.
– Com licença, eu preciso ir agora, Karin, vejo você
mais tarde... – Zyi disse timidamente isso e deixou a praça central sem mais
palavras. Ele foi ficando cada vez mais distante, mas ainda conseguiu ouvir Karin
gritando com o irmão dizendo “olha o que você fez” e “vá embora, eu te odeio,
Subaru!”.
Zyi foi direto para sua casa. Ele caminhou pela Rua do
Dragão enquanto admirado assistia as estrelas iluminando o céu daquela noite de
outono.
Era noite de lua cheia e essa estava vistosa no céu,
acompanhada de poucas nuvens. As corujas estavam caçando e Zyi podia vê-las
indo e vindo, sempre graciosa e silenciosamente. A brisa que balançava as
árvores suavemente completava a perfeição daquela bela cena.
Quando ele terminou de contemplar a paisagem, Zyi
entrou em casa, subiu as escadas e entrou no seu quarto. Ele ficou lá, deitado
em sua cama e olhando pela janela para que pudesse relaxar. Não levou muito
tempo para que pegasse no sono.