10 novembro, 2014

Ai Shigawa

Já passava da meia-noite quando eu finalmente decidi encerrar minhas atividades por aquele dia. A lua cheia rodeada por estrelas dava o tom de uma belíssima noite de primavera na qual a brisa passeava por entre os meus longos e lisos cabelos negros. Meus olhos, que eram azul-safira, encaravam aquele horizonte que misturava o breu noturno com o branco lunar. Como tudo isso é lindo!
Eu vinha treinando minhas habilidades como elementalista exaustivamente, pois eu tinha a intenção de me formar na Universidade de Magia do Abrigo do Inverno e, subsequentemente, me unir aos Magos Vermelhos de Omnia, simplesmente a organização mais respeitada do mundo arcano. Tais objetivos só estariam ao meu alcance se eu treinasse muito, e era o que eu vinha fazendo.
Após admirar o céu noturno, eu deixei as margens do lago Ssen, um dos meus pontos preferidos durante a noite, e segui para o meu lar: uma pequena cabana nos arredores da cidade. Apesar de meu recanto ficar relativamente longe da civilização, ele me trazia por consequência muita paz e tranquilidade para as atividades que realmente me agradavam: leitura e arcanismo.
Cheguei em casa cansada. As dez horas seguidas de treinamento podiam até ter dado resultado, já que meu domínio sobre a água continuava a se aprimorar, mas meus músculos e meus reservatórios de mana definitivamente agradeceriam pela noite de sono. Assim, eu armei o meu sistema de segurança, sendo ele inteiramente mágico, e retirei-me para o meu cômodo sem sequer dar atenção ao que me cercava. Tudo que eu quero ver agora é aquela minha cama maravilhosa!
Meu quarto testemunhou minha entrada a passos cansados e com a cabeça baixa. Eu sequer olhei para as paredes de madeira, apenas deitei-me e fechei os olhos. Eu não os abriria novamente naquele dia.

***

Eu acordei com a luz do sol batendo em meu rosto. Pela posição daquela gigantesca esfera flamejante, devia ser cerca de oito horas da manhã, ou seja, um ótimo horário para se sair da cama em um fim de semana com o intuito único de ler e praticar, mas isso me seria tirado.
Logo que eu me levantei da cama, ouvi gritos incomuns vindo do exterior da minha moradia: lobos uivando. Desde quando essa região é habitada por esse tipo de animal? Isso me preocupou. Coloquei minhas vestes de elementalista, as quais eram largas e inteiramente confeccionadas em tons distintos de azul. Saí do meu quarto, o que já me colocava na cozinha, e, então, segui para a pequena sala de estar, onde havia apenas uma poltrona e uma cadeira de madeira viradas para a lareira.
Esse pequeno intervalo havia sido o bastante para que o barulho que eu ouvira desaparecesse. Entretanto, não seria o suficiente para que eu o esquecesse.
Não havia muito o que eu pudesse fazer a respeito, então acabei optando por algo simples: ir ao Abrigo do Inverno e frequentar a taverna, afinal, não havia lugar mais oportuno para que eu me informasse sobre os tais lobos. Alguém mais deve ter ouvido. Se qualquer pessoa puder me ajudar, já será ótimo.
Após essa breve reflexão, eu deixei o meu recinto para trás e voltei para o aconchego da vila mais fria de Omnia. Eu estava verdadeiramente intrigada.

***

Quando eu cheguei na Taverna Invernal, o clima era o de sempre naquele tipo de ambiente: nojento. Homens sujos e mulheres promíscuas se embebedavam e experimentavam os mais variados prazeres do corpo, muitas vezes à vista de todos, no que era um extremo desacato ao pudor. Mas minha missão era mais importante do que os meus conceitos.
Não demorou um minuto sequer após a minha entrada para que os gritos indecorosos começassem a ecoar por ali. Mesmo constrangida, eu procurei por algum rosto conhecido, mas não tive sucesso. Nojentos. E meu pensamento tornou-se palavras quando uma mão boba acariciou o que não devia.
“O senhor acaba de cometer um grave erro” eu disse por entre os dentes.
“Não sei do que tu tá falando, mulher!” respondeu o indivíduo em tom de deboche. Eu o encarei firmemente e reparei bem em seus olhos castanhos. Bastou um movimento com as minhas mãos e a água que estava em um balde por ali, provavelmente sendo usada para a limpeza, ganhou um uso ironicamente inesperado. Foi com surpresa e medo que o ser do sexo masculino percebeu aquela quantidade de água sendo enfiada em sua boca e ali parando.
“Só não te sufoco porque você não merece nem o inferno!” E eu tirei a água dali e a joguei no chão. É até desnecessário dizer que o coitado desmaiou, mas sobreviveu.
“Você é louca?” questionou um homem assustado. Eu até admito que minha abordagem naquele ambiente era muito ríspida, mas eu não queria engraçadinhos achando que podiam fazer qualquer coisa comigo sem ter uma resposta.
“Cala-te, a não ser que também queira um pouco de água”, respondi a mais um indivíduo que deve ter ficado com tanto medo que perdeu o controle da própria bexiga. Esses dois nunca mais vão mexer comigo. Minha fama de má na taverna fazia com que apenas viajantes mal informados me interpelassem, o que me agradava. Eu nunca matara uma pessoa ali, mas era vista como uma assassina perigosa a quem eles deviam temer e respeitar. Se meus métodos eram questionáveis, a eficiência deles era evidente.
“Ai Shigawa, a Princesa de Gelo” uma voz que fez até a minha alma sentir calafrios falara comigo naquele instante. Eu me virei lentamente e encarei um indivíduo extremamente bonito, mas que, por algum motivo, não me inspirava coisas boas. Era um elfo trajado com um belíssimo manto marrom e dourado. Ele parecia ser um elementalista.
“Desculpe, mas eu não acho que nos conhecemos”. Definitivamente, eu não me recordava daquela face. Um elfo tão bonito não seria apagado da minha memória.
“Correção: você não me conhece, senhorita Shigawa, mas eu sei muito bem quem você é e percebo que reconheceu meus lobos hoje de manhã...” afirmou o homem. “Não se preocupe, pois eles são inofensivos... Enquanto eu os quiser assim, pelo menos”.
“O que você quer?” questionei. “Não negocio com criminosos, mas ouvirei suas palavras”.
“Meu nome é Neihtoh, eu sou um elementalista da terra.” Afirmou o indivíduo. “Minha ficha nessa vila é limpa até onde eu tenho conhecimento, logo, ninguém pode me chamar de criminoso aqui...” ele pareceu estar ofendido. “Veja bem, Princesa de Gelo, eu faço parte de um grupo com objetivos muito claros: libertar o norte de Omnia da opressão do Rei.”
“Não acha arriscado falar esse tipo de coisa em público?” questionei-o.
“Pelo contrário”, ele riu. “Com tantas pessoas falando, os ouvidos não estão voltados para nós.” Ele arrumou o cabelo com a mão direita e me olhava com profundidade em meus olhos. “Sei que você é partidária dessa causa”.
“Saia da minha frente antes que eu chame os guardas” falei com a frieza que me era característica. “Não tenho tempo para revolucionários sem causa”.

“Eu entenderei isso como um ‘vou pensar’” e ele se retirou. Como ele me conhece? Sabe até o meu nome... Ele é perigoso. E com aquele intenso início de fim de semana, eu fui para o lago Ssen para dar sequência ao meu treinamento.