Já
passava da meia-noite quando eu finalmente decidi encerrar minhas atividades
por aquele dia. A lua cheia rodeada por estrelas dava o tom de uma belíssima
noite de primavera na qual a brisa passeava por entre os meus longos e lisos
cabelos negros. Meus olhos, que eram azul-safira, encaravam aquele horizonte
que misturava o breu noturno com o branco lunar. Como tudo isso é lindo!
Eu
vinha treinando minhas habilidades como elementalista exaustivamente, pois eu
tinha a intenção de me formar na Universidade de Magia do Abrigo do Inverno e,
subsequentemente, me unir aos Magos Vermelhos de Omnia, simplesmente a
organização mais respeitada do mundo arcano. Tais objetivos só estariam ao meu
alcance se eu treinasse muito, e era o que eu vinha fazendo.
Após
admirar o céu noturno, eu deixei as margens do lago Ssen, um dos meus pontos
preferidos durante a noite, e segui para o meu lar: uma pequena cabana nos
arredores da cidade. Apesar de meu recanto ficar relativamente longe da
civilização, ele me trazia por consequência muita paz e tranquilidade para as
atividades que realmente me agradavam: leitura e arcanismo.
Cheguei
em casa cansada. As dez horas seguidas de treinamento podiam até ter dado
resultado, já que meu domínio sobre a água continuava a se aprimorar, mas meus
músculos e meus reservatórios de mana definitivamente agradeceriam pela noite
de sono. Assim, eu armei o meu sistema de segurança, sendo ele inteiramente
mágico, e retirei-me para o meu cômodo sem sequer dar atenção ao que me
cercava. Tudo que eu quero ver agora é
aquela minha cama maravilhosa!
Meu
quarto testemunhou minha entrada a passos cansados e com a cabeça baixa. Eu
sequer olhei para as paredes de madeira, apenas deitei-me e fechei os olhos. Eu
não os abriria novamente naquele dia.
***
Eu
acordei com a luz do sol batendo em meu rosto. Pela posição daquela gigantesca
esfera flamejante, devia ser cerca de oito horas da manhã, ou seja, um ótimo
horário para se sair da cama em um fim de semana com o intuito único de ler e
praticar, mas isso me seria tirado.
Logo
que eu me levantei da cama, ouvi gritos incomuns vindo do exterior da minha
moradia: lobos uivando. Desde quando essa
região é habitada por esse tipo de animal? Isso me preocupou. Coloquei
minhas vestes de elementalista, as quais eram largas e inteiramente
confeccionadas em tons distintos de azul. Saí do meu quarto, o que já me
colocava na cozinha, e, então, segui para a pequena sala de estar, onde havia
apenas uma poltrona e uma cadeira de madeira viradas para a lareira.
Esse
pequeno intervalo havia sido o bastante para que o barulho que eu ouvira
desaparecesse. Entretanto, não seria o suficiente para que eu o esquecesse.
Não
havia muito o que eu pudesse fazer a respeito, então acabei optando por algo
simples: ir ao Abrigo do Inverno e frequentar a taverna, afinal, não havia
lugar mais oportuno para que eu me informasse sobre os tais lobos. Alguém mais deve ter ouvido. Se qualquer
pessoa puder me ajudar, já será ótimo.
Após
essa breve reflexão, eu deixei o meu recinto para trás e voltei para o aconchego
da vila mais fria de Omnia. Eu estava verdadeiramente intrigada.
***
Quando
eu cheguei na Taverna Invernal, o clima era o de sempre naquele tipo de
ambiente: nojento. Homens sujos e mulheres promíscuas se embebedavam e
experimentavam os mais variados prazeres do corpo, muitas vezes à vista de
todos, no que era um extremo desacato ao pudor. Mas minha missão era mais
importante do que os meus conceitos.
Não
demorou um minuto sequer após a minha entrada para que os gritos indecorosos
começassem a ecoar por ali. Mesmo constrangida, eu procurei por algum rosto
conhecido, mas não tive sucesso. Nojentos.
E meu pensamento tornou-se palavras quando uma mão boba acariciou o que não
devia.
“O
senhor acaba de cometer um grave erro” eu disse por entre os dentes.
“Não
sei do que tu tá falando, mulher!” respondeu o indivíduo em tom de deboche. Eu
o encarei firmemente e reparei bem em seus olhos castanhos. Bastou um movimento
com as minhas mãos e a água que estava em um balde por ali, provavelmente sendo
usada para a limpeza, ganhou um uso ironicamente inesperado. Foi com surpresa e
medo que o ser do sexo masculino percebeu aquela quantidade de água sendo
enfiada em sua boca e ali parando.
“Só
não te sufoco porque você não merece nem o inferno!” E eu tirei a água dali e a
joguei no chão. É até desnecessário dizer que o coitado desmaiou, mas
sobreviveu.
“Você
é louca?” questionou um homem assustado. Eu até admito que minha abordagem
naquele ambiente era muito ríspida, mas eu não queria engraçadinhos achando que
podiam fazer qualquer coisa comigo sem ter uma resposta.
“Cala-te,
a não ser que também queira um pouco de água”, respondi a mais um indivíduo que
deve ter ficado com tanto medo que perdeu o controle da própria bexiga. Esses dois nunca mais vão mexer comigo.
Minha fama de má na taverna fazia com que apenas viajantes mal informados me
interpelassem, o que me agradava. Eu nunca matara uma pessoa ali, mas era vista
como uma assassina perigosa a quem eles deviam temer e respeitar. Se meus
métodos eram questionáveis, a eficiência deles era evidente.
“Ai
Shigawa, a Princesa de Gelo” uma voz que fez até a minha alma sentir calafrios
falara comigo naquele instante. Eu me virei lentamente e encarei um indivíduo
extremamente bonito, mas que, por algum motivo, não me inspirava coisas boas.
Era um elfo trajado com um belíssimo manto marrom e dourado. Ele parecia ser um
elementalista.
“Desculpe,
mas eu não acho que nos conhecemos”. Definitivamente, eu não me recordava
daquela face. Um elfo tão bonito não
seria apagado da minha memória.
“Correção:
você não me conhece, senhorita Shigawa, mas eu sei muito bem quem você é e
percebo que reconheceu meus lobos hoje de manhã...” afirmou o homem. “Não se
preocupe, pois eles são inofensivos... Enquanto eu os quiser assim, pelo menos”.
“O
que você quer?” questionei. “Não negocio com criminosos, mas ouvirei suas
palavras”.
“Meu
nome é Neihtoh, eu sou um elementalista da terra.” Afirmou o indivíduo. “Minha
ficha nessa vila é limpa até onde eu tenho conhecimento, logo, ninguém pode me
chamar de criminoso aqui...” ele pareceu estar ofendido. “Veja bem, Princesa de
Gelo, eu faço parte de um grupo com objetivos muito claros: libertar o norte de
Omnia da opressão do Rei.”
“Não
acha arriscado falar esse tipo de coisa em público?” questionei-o.
“Pelo
contrário”, ele riu. “Com tantas pessoas falando, os ouvidos não estão voltados
para nós.” Ele arrumou o cabelo com a mão direita e me olhava com profundidade
em meus olhos. “Sei que você é partidária dessa causa”.
“Saia
da minha frente antes que eu chame os guardas” falei com a frieza que me era
característica. “Não tenho tempo para revolucionários sem causa”.
“Eu
entenderei isso como um ‘vou pensar’” e ele se retirou. Como ele me conhece? Sabe até o meu nome... Ele é perigoso. E com
aquele intenso início de fim de semana, eu fui para o lago Ssen para dar
sequência ao meu treinamento.