13 janeiro, 2015

Pedro e o Lobo



As mãos pequenas, mas ágeis, percorrem os detritos à caça de algo que valha um sorriso. Afinal, é pelo vislumbre do conjunto, já não tão regular de dentes, que um dia já foram motivo de orgulho, que Pedro hoje revira o que para muitos nada mais é que sobras, mas para ele pode guardar infinitos tesouros.

O sorriso é a mostra de afeição da mãe, que toma das mãos miúdas o prêmio e esconde-o fundo no saco, abarrotado e arrebentado, para que possam mais tarde, em casa, examinar o fruto de seu trabalho e saborear este breve triunfo sobre os outros tantos miseráveis que, como eles, buscam no lixo algum luxo e que, ou não tiveram sorte de encontrarem primeiro, ou não viram a jovem mãe (que para quem não lhe soubesse a idade, já a tomaria por uma senhora devido a pele envelhecida) e seu filho tão miúdo esconderem no saco.

Pedro ainda é pequeno, mas já grande o suficiente para entender algumas coisas. Bem, não muitas, mas ele, com certeza, se esforça. Logo, ele entende que por mais que goste de ver o sorriso, este pode ser denunciador, motivo pelo qual é tão furtivo. E por mais que suas mãos sejam pequenas, elas servem para chegar aonde outras não chegam, sendo, por isso, um grande trunfo para desbravar as inumeráveis montanhas com que se depara todos os dias. No entanto, sabe que elas são, também, muito pequenas para se proteger dos tapas, socos e pancadas que recebe do padrasto. E que daqueles lábios até brotam sorrisos, mas nunca do mesmo tipo que os sorrisos da mãe. Ele não sabe dizer muito bem como, mas sabe que são diferentes.

A rotina de Pedro e de sua mãe é sempre a mesma, desde que este consegue se lembrar. Bem cedo, antes mesmo de o sol sair, andam os dois muito e muito, tanto que as perninhas de Pedro doem bastante. Mas ele não pede mais para aconchegar-se ao colo da mãe. Pedro pode ser apenas um garotinho, mas sabe que já está crescido, e que seu peso só vem acumular as dores da face sofrida da adorada mãe. Assim, ele se esforça para não reclamar e caminha com uma postura ereta, como um “homenzinho” – o que quer que isso queira dizer. Depois eles chegam até as montanhas malcheirosas e catam, catam, catam até o sol sumir de novo e ficar frio, aí eles voltam para casa.

Mas tem coisas que Pedro ainda não consegue entender. Por exemplo, ele acha que sabe bem o que é o amor. Afinal, quando a mãe diz que o ama e o beija no alto da cabeça, o calor que lhe invade o peito, bem, deve ser isso o tal de amor. Mas, ao mesmo tempo, ele fica confuso. Porque a mãe diz que ama o padrasto; e ele, a ela. Então por que ele bate na sua mãe até que o rosto fique roxo e a boca sangre? E por que ele, que ama tanto a mãe, nada mais consegue fazer que abraçar as próprias perninhas e chorar baixinho? Por acaso ele não devia protegê-la? Ele não é um “homenzinho”?

Pedro ainda é muito pequeno para entender algumas coisas – tem só cinco anos – mas já grande o suficiente para olhar para a mãe, depois da última luta com o padrasto, quando este sai com seus tesouros para vender e comprar bebida, enquanto fica a mãe esparramada no chão a chorar baixinho, e fazer a pergunta que o persegue: por quê? A mãe também o acha pequeno, seu querido bebê, mas já o considera grande o suficiente para responder à pergunta: porque não há para onde ir.

Isso faz com que Pedro pense, e pense, mas pense muito mesmo no que ele pode fazer com essa resposta. Afinal, ele é só um garotinho, mas já é grande o suficiente para entender o que é não ter para onde ir. E que as pessoas têm casas, não como o barraco onde vivem com o padrasto, mas aquelas bonitas e coloridas, como no desenho que assistira na “tevelisão” de um vizinho. Logo, se eles tivessem uma casa, eles teriam para onde ir. Mas como se consegue uma casa?

Resolveu mais uma vez perguntar à mãe que, sempre gentil com seu filho, apesar das agruras de sua vida, lhe explica que para isso é preciso dinheiro, assim como para comprar os doces da venda. Pedro já ganhou, muitas vezes, moedas do padrasto por ir buscar bebida no bar, e com estas comprou balas e pirulitos. Sim, ele ainda é muito pequeno, mas entende que é por causa desse tal de dinheiro que não tem brinquedos ou roupas bonitas como vê em algumas outras crianças quando vai com a mãe até o centro da cidade. E não será por isso também que o sorriso da mãe desponta tão pouco? Por falta das tais moedas?

Bom, Pedro já é grande o suficiente para entender algumas coisas, mas ainda é apenas um garotinho que quer muito ver a mãe sorrir. Por isso, passa a imaginar quantas moedinhas seriam necessárias para comprar a casa e, com ela, quem sabe um sorriso? Volta a perguntar à mãe e esta responde “Muitas, meu filho”. Mas quantas moedas serão muitas? Uma das suas mãos cheias bastaria? Não, uma casa por certo deve custar mais que isso, umas cinco ou seis mãos cheias, isso sim!

Logo, Pedro decide começar a juntar suas moedinhas para poder comprar, em segredo, uma casa para ele e a mãe morarem, para que possa fazer-lhe uma grande surpresa. Além disso, Pedro é só um garotinho, mas já é grande o suficiente para saber que esse tipo de coisa deve ser feita escondida do padrasto – que leva todo o dinheiro, mas quase nunca aparece com comida, só garrafas e mais garrafas. Para escondê-las, Pedro encontrou uma lata, que enterra embaixo do barraco onde vivem, sob um tapete apodrecido. 

Pedro está tão feliz! Logo, logo vai poder mostrar para a mãe sua lata de moedinhas, estufar o peito com orgulho e lhe dizer quantos doces deixou de comer para economizá-las, a fim de que os dois pudessem ir embora e comprar uma casa só deles, sem o padrasto. Quem sabe até contar para ela o que o padrasto faz quando ela não está, ou não está vendo, embaixo do cobertor, que deixa uma coisa pegajosa no final. Pedro não gosta disso. É só um garotinho, mas grande o suficiente para entender que isso não é uma brincadeira muito legal, por isso que o padrasto sempre lhe diz que ele nunca, nunca, NUNCA pode contar para a mãe.

Mas não tem problemas, nem isso mais o incomoda. Agora, todas as noites, sonha com a casa que vai comprar para a mãe, de um, não, de dois andares, com um banheiro, um quarto só para ele, cheio de brinquedos e, quem sabe, até uma “tevelisão”? Seu pote de moedas já está bem cheinho, quase até a borda, e com certeza poderá comprar todas estas coisas e muitas outras mais. Pensando assim, resolve, numa tarde, ir conferir como está seu tesouro. Embevecido, contemplando o fruto de seu esforço e repassando na mente todos os planos que construíra, não vê a sombra do padrasto que se aproxima por trás e o surpreende antes que possa esconder seu bem mais precioso.

Pedro pode ser apenas um garotinho, mas já é grande o suficiente para entender a cobiça estampada nos olhos do padrasto, e que fim tomarão seus mais ternos sonhos. Mas também é apenas um pobre garotinho e, com lágrimas nos olhos, roga ao padrasto que lhe devolva seu dinheiro, para que ele e sua mãe possam ir embora e não sejam mais o grande peso na vida do padrasto, coisa da qual ele sempre reclama. E é por ser só um garotinho, que dói muito quando o padrasto, em seu sorriso que é muito diferente do sorriso da mãe, diz que seria preciso juntar moedas numa quantia que enchesse o barraco onde moram, para comprar uma casa, e que, mesmo assim, não seria o suficiente. E, infelizmente, Pedro já é crescido o bastante para entender o que o padrasto diz, e que este está dizendo a verdade, enquanto sopesa sua latinha na mão, calculando quantas garrafas conseguirá comprar.

Depois de levar um tapa no lado da cabeça, dois chutes no estômago e ver o padrasto afastar-se, provavelmente rumo ao bar, Pedro entra em casa e deita no colchão que ocupa no canto do quarto da mãe, para chorar. Ele pode ser apenas um garotinho – sim ele tem somente cinco anos – mas agora ele já é grande o suficiente para entender uma coisa muito importante: os sonhos não valem a pena.

Comporá o livro "Sangue na lua e outros contos"
Pág. do livro www.facebook.com/sanguenalua