23 dezembro, 2014

Um (algumas vezes verdadeiro) Conto Natalino



O seu nome é Emily. E que pode ser apenas uma garotinha, mas até mesmo garotinhas como ela já entendem algumas coisas. Por exemplo, ela sabe que o pai é um, mas também é dois às vezes – separado ou ao mesmo tempo. Por que ela aprendeu que ele nem sempre esta sozinho. Às vezes, ele esta com “A-Coisa-Ruim”, como a mamãe sempre diz, e quando ele está com “A-Coisa-Ruim”, ah! Aí não tem jeito! Nesses dias o pai não brinca com Emily, não a pega no colo, não a recebe com os braços estendidos e a gira como se fosse um pião, ou a ergue como um avião no céu. Não. Nesses dias, Emily precisa se encolher bem quietinha em algum canto da casa (ou “Aquele-Monte-de-Lixo”, como as colegas da escolinha disseram) em que ela, a mãe e o pai vivem. Por que Emily descobriu que “A-Coisa-Ruim” tem olhos muito grandes, e sempre acaba percebendo quando alguma coisa esta errada. E então fica muito, muito, mas muito braba mesmo com ela e a mamãe. Bom, por que deve haver alguma coisa errada para que ela fique tão braba. Suas pernas e braços recuperados de duas luxações, suas pequenas costelas fraturadas e os diversos hematomas que o digam. Uma vez “A-Coisa-Ruim” estava tão, mas tão braba, e tinha pegado no pai tão, mas tão forte, que o fez chutar sua barriguinha várias vezes, mas ela não chorou. Emily era só uma garotinha – e o que as garotinhas podem entender do complexo mundo adulto? – mas sabia que chorar só iria piorar as coisas, então se calava. Até por que a mamãe acabou dormindo depois que “A-Coisa-Ruim” jogou a cadeira por cima dela, um sono bem pesado. Por mais que Emily a sacudisse ela não abria os olhos. Então ela não chorou. Qual o sentido se não haveria ninguém para acalentá-la? 

Sim, Emily só tinha quatro anos, mas já era grande o suficiente para saber de algumas coisas. Mas, ao mesmo tempo, oh, ela era tão pequena! E feliz – ou infelizmente, os pontos de vista são diversos – ainda tinha sonhos, esperanças e acreditava em muitas coisas, como qualquer menininha. Papai Noel por exemplo. Todo anos, desde que Emily conseguia se lembrar, ele ia até a escolinha (Emily gostava MUITO da escolinha, lá sempre tinha comida e alguns brinquedos, apesar de sempre quebrados) pegava as crianças no colo, e perguntava o que elas queriam ganhar de presente. Todo ano, ela sabia exatamente o que pedir: uma boneca. Podia ser qualquer uma. Emily podia ser grande o suficiente para saber que deveria se esconder quando o pai chegava bêbado em casa, mas ainda não o bastante para distinguir entre marcas e modelos. Para Emily, uma boneca era apenas uma boneca, e mesmo este “apenas” nunca tinha sido mais que um sonho... Quando em meio a este, se via segurando “seu bebê” e o embalando nos braços, colocando-o para dormir e dizendo que o ia proteger. Não, “A-Coisa-Ruim” não pegaria seu bebê.

Apesar de tão pequena, Emily, no entanto, já começava a ficar grande o suficiente para desconfiar de que algo estava errado. Talvez Papai Noel nem tivesse tantos “duentes” mágicos a serviço dele. Aliás, ele é que parecia doente, tão magrinho, coitado! Sempre tão rechonchudo nas fotos, de certo por isso é que nunca podia trazer sua boneca. Emily só tinha quatro anos, mesmo assim já começava a escutar com mais interesse quando as crianças mais velhas da escola diziam que Papai Noel era que nem o Faz-de-conta, tudo de mentirinha. Mas a tia da escola disse que ele existia sim, e que estava tão magrinho quanto Emily por que tinha vindo correndo lá do “PocoNorte” e lá era muito, mas muito longe. No que ela acreditou, mas queria mesmo saber como é que um lugar “pouco” poderia ser assim tão longe ... Emily sentiu alívio, por que ainda havia esperança. A boneca ainda podia ser pedida. Então por que nunca vinha? Seria a falta da chaminé? Ela precisava investigar isto melhor.

Apesar de extremamente simples, a mãe de Emily sempre fazia questão de montar a árvore de natal. No entanto, apesar dos presentes que ali embaixo apareciam fossem úteis – calcinhas, meias e, uma vez, até teve um vestido que ficava grande e tinha um pequeno rasgo por onde Emily brincava de enxergar o umbigo e, mesmo assim, uma das melhores coisas que já ganhara – mas nunca a tão sonhada boneca. Emily poderia ser só uma garotinha, mas sabia muito bem que, lá embaixo, não havia nada com o formato de uma boneca. Ficou triste. Papai perguntou O-Que-Diabo havia com ela. Ela viu que “A-Coisa-Ruim” já rondava o pai, mas mesmo com medo de despertar sua ira falou: era uma menina má, pois só assim se explicaria a ausência do que tanto almejava. Papai (que era papai quando “A-Coisa-Ruim” não estava com ele) prometeu o inconcebível. ELE, e não o bom velhinho, atenderia à súplica da filha. Que alegria! Ela nem podia imaginar como seria quando finalmente pudesse tê-la, sua boneca, seu bebê, em seus braços. Mamãe brigou, disse que o dinheiro era para as contas, pagando com seu frágil rosto a negativa, mas não importava. Papai havia decidido, e quando ele queria algo, ele conseguia.

Em sua aflição, mal olhou os presentes que a mão zelosa da mãe havia preparado. Um rudimento de culpa pelo olho começando a arroxear da mãe a acometeu. Mas a culpada não fora ela, que não quis dar ao pai o dinheiro? Ficou à porta, até muito tarde, esperando papai com o tesouro prometido. Até o sol se por, até a noite cobrir a terra, e ficar cada vez mais fria. A mãe, a custo tentou convencer Emily a ir dormir. Mas ela não podia. Como conciliar o sono? Emily já sabia de muitas coisas, mas também era apenas uma garotinha. Como entender a aflição da mãe, a torcer nervosamente as mãos? Que a expectativa sua era também a dela com a diferença de que, enquanto uma embalava doces sonhos, a outra, mais madura, já conhecia bem demais a dura realidade que na esquina se avizinhava? 

Quando por fim papai chegou, não vinha sozinho. Emily era só uma garotinha, mas crescida o suficiente para saber que, quando papai andava daquele jeito, era por que ali estava o pai e “A-Coisa-Ruim”; e mesmo assim era (de novo) apenas uma garotinha que, diante de tamanha frustração, não consegue conter o pranto ao ver as mãos vazias, prontas para bater. Não, não era uma boa hora para chorar. A mão do pai veio pesada, mas não foi maior que a dor que Emily ia sentir indefinidamente, após as marcas do pequeno corpo desaparecerem. Por que há feridas que sangram indefinidamente, cortes que não cicatrizam. Encolhida, chorando sua dor, Emily é apenas uma garotinha de quatro anos, mas agora crescida o suficiente para saber mais uma coisa nessa sua tão curta e já tão dolorosa vida: Papai Noel realmente não existe.


Dedicado à todas as Emilys, anônimas, que infelizmente ainda existem – apesar de nossa aparente recusa em ver – em nossa sociedade atual.